terça-feira, 12 de outubro de 2010

O Crovo (Edgar Alan Poe) trad. Machado de Assis

Em certo dia, à hora, à hora


Da meia-noite que apavora,

Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,

Ao pé de muita lauda antiga,

De uma velha doutrina, agora morta,

Ia pensando, quando ouvi à porta

Do meu quarto um soar devagarinho,

E disse estas palavras tais:

"É alguém que me bate à porta de mansinho;

Há de ser isso e nada mais."



Ah! bem me lembro! bem me lembro!

Era no glacial dezembro;

Cada brasa do lar sobre o chão refletia

A sua última agonia.

Eu, ansioso pelo sol, buscava

Sacar daqueles livros que estudava

Repouso (em vão!) à dor esmagadora

Destas saudades imortais

Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora.

E que ninguém chamará mais.



E o rumor triste, vago, brando

Das cortinas ia acordando

Dentro em meu coração um rumor não sabido,

Nunca por ele padecido.

Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,

Levantei-me de pronto, e: "Com efeito,

(Disse) é visita amiga e retardada

Que bate a estas horas tais.

É visita que pede à minha porta entrada:

Há de ser isso e nada mais."



Minh'alma então sentiu-se forte;

Não mais vacilo e desta sorte

Falo: "Imploro de vós, — ou senhor ou senhora,

Me desculpeis tanta demora.

Mas como eu, precisando de descanso,

Já cochilava, e tão de manso e manso

Batestes, não fui logo, prestemente,

Certificar-me que aí estais."

Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,

Somente a noite, e nada mais.



Com longo olhar escruto a sombra,

Que me amedronta, que me assombra,

E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,

Mas o silêncio amplo e calado,

Calado fica; a quietação quieta;

Só tu, palavra única e dileta,

Lenora, tu, como um suspiro escasso,

Da minha triste boca sais;

E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;

Foi isso apenas, nada mais.



Entro coa alma incendiada.

Logo depois outra pancada

Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:

"Seguramente, há na janela

Alguma cousa que sussurra. Abramos,

Eia, fora o temor, eia, vejamos

A explicação do caso misterioso

Dessas duas pancadas tais.

Devolvamos a paz ao coração medroso,

Obra do vento e nada mais."



Abro a janela, e de repente,

Vejo tumultuosamente

Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.

Não despendeu em cortesias

Um minuto, um instante. Tinha o aspecto

De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,

Movendo no ar as suas negras alas,

Acima voa dos portais,

Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;

Trepado fica, e nada mais.



Diante da ave feia e escura,

Naquela rígida postura,

Com o gesto severo, — o triste pensamento

Sorriu-me ali por um momento,

E eu disse: "O tu que das noturnas plagas

Vens, embora a cabeça nua tragas,

Sem topete, não és ave medrosa,

Dize os teus nomes senhoriais;

Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"

E o corvo disse: "Nunca mais".



Vendo que o pássaro entendia

A pergunta que lhe eu fazia,

Fico atônito, embora a resposta que dera

Dificilmente lha entendera.

Na verdade, jamais homem há visto

Cousa na terra semelhante a isto:

Uma ave negra, friamente posta

Num busto, acima dos portais,

Ouvir uma pergunta e dizer em resposta

Que este é seu nome: "Nunca mais".



No entanto, o corvo solitário

Não teve outro vocabulário,

Como se essa palavra escassa que ali disse

Toda a sua alma resumisse.

Nenhuma outra proferiu, nenhuma,

Não chegou a mexer uma só pluma,

Até que eu murmurei: "Perdi outrora

Tantos amigos tão leais!

Perderei também este em regressando a aurora."

E o corvo disse: "Nunca mais!"



Estremeço. A resposta ouvida

É tão exata! é tão cabida!

"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência

Que ele trouxe da convivência

De algum mestre infeliz e acabrunhado

Que o implacável destino há castigado

Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,

Que dos seus cantos usuais

Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,

Esse estribilho: "Nunca mais".



Segunda vez, nesse momento,

Sorriu-me o triste pensamento;

Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;

E mergulhando no veludo

Da poltrona que eu mesmo ali trouxera

Achar procuro a lúgubre quimera,

A alma, o sentido, o pávido segredo

Daquelas sílabas fatais,

Entender o que quis dizer a ave do medo

Grasnando a frase: "Nunca mais".



Assim posto, devaneando,

Meditando, conjeturando,

Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,

Sentia o olhar que me abrasava.

Conjeturando fui, tranqüilo a gosto,

Com a cabeça no macio encosto

Onde os raios da lâmpada caíam,

Onde as tranças angelicais

De outra cabeça outrora ali se desparziam,

E agora não se esparzem mais.



Supus então que o ar, mais denso,

Todo se enchia de um incenso,

Obra de serafins que, pelo chão roçando

Do quarto, estavam meneando

Um ligeiro turíbulo invisível;

E eu exclamei então: "Um Deus sensível

Manda repouso à dor que te devora

Destas saudades imortais.

Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."

E o corvo disse: "Nunca mais".



“Profeta, ou o que quer que sejas!

Ave ou demônio que negrejas!

Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno

Onde reside o mal eterno,

Ou simplesmente náufrago escapado

Venhas do temporal que te há lançado

Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo

Tem os seus lares triunfais,

Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?"

E o corvo disse: "Nunca mais".



“Profeta, ou o que quer que sejas!

Ave ou demônio que negrejas!

Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!

Por esse céu que além se estende,

Pelo Deus que ambos adoramos, fala,

Dize a esta alma se é dado inda escutá-la

No éden celeste a virgem que ela chora

Nestes retiros sepulcrais,

Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”

E o corvo disse: "Nunca mais."



“Ave ou demônio que negrejas!

Profeta, ou o que quer que sejas!

Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!

Regressa ao temporal, regressa

À tua noite, deixa-me comigo.

Vai-te, não fique no meu casto abrigo

Pluma que lembre essa mentira tua.

Tira-me ao peito essas fatais

Garras que abrindo vão a minha dor já crua."

E o corvo disse: "Nunca mais".



E o corvo aí fica; ei-lo trepado

No branco mármore lavrado

Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.

Parece, ao ver-lhe o duro cenho,

Um demônio sonhando. A luz caída

Do lampião sobre a ave aborrecida

No chão espraia a triste sombra; e, fora

Daquelas linhas funerais

Que flutuam no chão, a minha alma que chora

Não sai mais, nunca, nunca mais!

3 comentários:

  1. Este pequeno poema foi postado em homenagem a um amigo blogueiro "Fabrício"... traçando uma intertextualidade da animação da personagem Vicent com O Corvo.

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  2. Simplesmente belíssimo!
    uhauhauhauhua!
    Maravilhado com tamanha beleza e precisão dos versos!
    Muito bom...
    Bom msm.

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  3. Verdade, é muito lindo...
    Agora imagina este poema recitado por pessoas vestidas de preto, inclusive com o rosto pintado de preto e branco...
    Super emocionante!!
    É uma lembrança que guardo sempre comigo!!

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